Oficina Literária

Oficina Literária é uma disciplina do TEL ministrada pela professora Elizabeth Hazin

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Sonho da Laís

Apesar de ansiosa, o sono vinha sem delongas. Com os olhos semicerrados, lutava para permanecer em vigília. Queria estar desperta quando o navio ancorasse no Brasil! Meu corpo ia aos poucos pedindo o descanso e contra minha vontade, eu já estava completamente sonolenta. O barulho da água batendo na embarcação era a minha canção de ninar. Aos poucos, meus pensamentos se condensaram como o vapor de água que saia da chaleira quando faziam chá de lakka em Helsinque.

Uma porta de madeira pintada em branco se abriu vagarosamente. De dentro emanava uma luz forte, um clarão amarelado que tornava impossível distinguir o que havia dentro do cômodo. Como o mar no Antigo Testamento que abriu caminho para Moisés e seu povo passarem, a luz se dispersou e deixou uma reta. Por esse caminho, uma mulher, flutuando, veio em direção à porta branca. Vestia uma túnica grega decorada com uma larga variedade de cores: amarelo, violeta, vermelho, roxo e dourado. A mulher era alva, seu nariz, longo e pontudo – algo que certamente afirmava expressividade à sua figura - e seus cachos escuros eram tais quais espirais que se entrelaçavam e pareciam compor naturalmente um nobre penteado. Seu semblante lembrava aconchego: o olhar maternal era doce e calmante, os finos lábios desenhavam um sorriso contido que pareciam convidar quem quer que estivesse à sua frente para o seu colo e até mesmo a inclinação do seu rosto assemelhava-se a leite quente antes de dormir. Os braços da tal mulher estavam abertos e uma luz estranha emanava do seu corpo da mesma forma que eu sempre imaginei que emanasse da forma física de um santo ou de qualquer outra divindade cristã. Era como se essa luz fosse uma materialização de bondade e eternidade. Uma mulher diferente, mais nova, se jogava nos braços da primeira e a mesma claridade rodeava o corpo da outra. Que estranho! A mais nova parecia ser...eu. Eu?

Acordei assustada e, ao digerir o sonho estranho que me fez despertar, em pouco tempo me dei conta de que não só era eu a mulher mais nova, mas também a outra criatura parecia ter o rosto que eu sempre imaginei que fosse da minha mãe. Que engraçado... estava tão ansiosa para minha chegada aos trópicos e, assim, enfim conhecer minha mãe, que até mesmo os sonhos esse meu estado impaciente interrompia.

Sonho da Ludmilla

Todas as luzes do mundo, apagadas. Só a luzinha que emana do corpo de cada uma menina, fios trançados no ar saindo de dentro daqueles sonos, ilumina.

O teto descolado das paredes começa a subir. Não descola um lustre de vidro que sobe também, agora sem brilho porque a luz apagada. Meus olhos no lustre, as paredes sem teto do quarto embaixo e a cama. Alguém dormindo, diminuindo diminuindo. Embaixo do cômodo a casa e a rua, menores, ruídos de paredes ruindo, duas ainda em pé flutuam no espaço escuro e cinza. Afastam. Da superfície, tudo começa a soltar-se em níveis, lentos, subindo; ruem alicerces e raízes de todos os chãos. Na cama o corpo ou a sombra do corpo. Vejo do alto, vejo a frente e as costas de quem dorme irreconhecível, e diminui mais, mais rápido, menor, tão veloz vira um ponto luminoso, desvia dos olhares de cada parede voando, vai. Tudo escurece.

Dormem profundas. Um tenso movimento aproxima seus fios, hesitantes ainda em convergir no ponto. Respiram pesadas, como faltasse o ar.

Uma sala muito branca, muito branca, não sei se enorme. Se são paredes, lençóis ou gigantes folhas de papel, não sei, sua brancura em volta engole sofás lustres e mesas, todos os objetos, sem formas, seus volumes perdidos, engolidos no branco. Um balde de tinta alcança-me as mãos, vem um pincel, dispara a ação e uma mancha. O risco rasgando o branco escorre a sangue. Há espaços de segundos e tenho um balde amarelo, comigo o pincel faz novo risco. Não vejo o lugar das tintas, não intuo a que vêm ou o onde em que desaparecem. Intervalos mais rápidos, mais escuros, envolvem a tudo em sombras, cinzas, cores de escuro, de novo o branco e outro balde de tinta nas mãos. Abandonam-me o pincel e os traços. Joga o balde a tinta na parede, eu segurando o balde, o conteúdo verde escuro, seguem gradações de verde e seus barulhos lançados no quadrado. Outro universo, pairando, abriga vozes e rostos translúcidos, ganha volume uma música. Vêm os azuis, outros sons. Tilintam esparramadas cores, espessas cordas, dedilhados os traços a quantas mãos?, acordes pintados, pintando, não é a formação de cores a intenção última dessas tintas. O contato ritmado, cadente, cada tinta um som. As manchas ressoam, eu segurando os baldes, quem faz a música? Vem outro vermelho, passa por mim e atira no canto concentrado de amarelos e laranjas. O estrondo maior. Tudo: silêncio cinza.

Afundam, imersas nos sonos. O espaço escuro é do tamanho da vida. Tudo que já se viu ou tocou está lá, no dentro do sonho, tudo e as pessoas.

... não encontro portas fechando a passagem, erro as entradas e saídas como se não fosse minha a casa. O corredor anda em voltas, dobras, o corredor infinito. Há um retrato familiar de alguém que nunca vi e que me olha, sabendo-me. O corredor avança seu traço, trazendo outros retratos e seus nomes, tão habituados ao meu chamado, acompanham rostos estranhos. Evoco a foto mais próxima e um retrato trocado, longe, responde. Nomes desprendidos de pessoas foram juntar-se a outras, nomes perdidos de donos, soltos das faces, subtraídos das ações. Nenhuma voz habita a conversa de lá, ninguém toca a música vinda das paredes ou de cima. Os passos que alguém deixou continuam, sozinhos, seu curso. Embaralhado no corredor o caminho, o caminho indo, embaralhando-me, eu a embaralhar-me-ando mais. Cada passo traz uma moldura preenchida, quadros de tinta fresca escorrendo gritos harmoniosos. Meus passos ecoam os passos de alguém, atrás. Surgem espelhos e janelas em outras paredes, surgem e não iluminam o ambiente opaco. Eu, e tudo, em cores de sombra. O caminho é apressado pela presença atrás, passa sem ver os reflexos nos espelhos ou que vistas das janelas. Corro, o ar pesado e escasso. Respiram quadros paredes desconhecido e caminho, respiram o ar não renovado que diminui e pesa. Falta o ar da corrida, falta ar, corro, o ar. Sem ar, (). Ando. O caminho me arrasta até parar em frente a outra parede, seu espelho e janela. Ainda sinto o corpo atrás de mim, à espreita, não consigo mover o caminho e a parede escura, lenta, se aproxima. Da janela aberta, o mundo nos ares: ruas, construções, árvores, arquipélagos, animais florestas pensamentos elevados, desviando de nuvens. O mundo suspenso. Vira, mirando-me, o espelho, mas não mostra meu rosto, rosto nenhum de gente. Reflete o incomum corpo que me segue, me olha sem olhos e sem pernas vem vindo, aproximando. Nada vejo e é uma visão, sim, porque vejo, não sei dizer, mas vejo, e sei, no escuro. No escuro, há um limiar. Aquela presença é a consciência saltada de seu corpo.

Os fios de dentro dos sonhos saem, aceleram, unem entre as sombras e desviam voando, vão. Os fios pra dentro do sonho mergulham, abrem um buraco e o espaço enorme agora desfeito em denso líquido gira, escoa veloz e verde segue girando, ressoa ecos da música, escoa em círculos, regira no escuro, vai. Despertam de um salto as três meninas.

domingo, 12 de abril de 2009

Sonho - Manuela

O último sonho

O mar estava quente. Eu estava, como sempre, mergulhada bem longe da praia. Estava no exato local onde estive com meu pai pela última vez. Mas, dessa vez, podia sentir até o cheiro da água salgada. Tudo parecia muito real. Tentei tocar as rochas. Pude senti-las e isto me assustou. O dia estava indo embora e o sol poente, visto do fundo do mar era, agora, uma mancha alaranjada embaçada, que oscilava e desparecia aos poucos. Eu tinha pressa, ele estava afundando. Meu pai descia e não respirava mais, eu sabia, mas eu precisava alcançá-lo. As águas-vivas estavam lá, seguravam-no como se freiassem a sua queda. Havia o brilho ao redor dele e emanava delas. Era uma luz insuportavelmente forte, mas sem ela não seria possível enxergar nada àquela hora. Aquele homem caía com os olhos fechados e as roupas que nunca foram trocadas. Toda aquela cena, com apenas uma ou outra mudança, se repetia a cada noite em todos os meus sonhos. Mas agora estava diferente. Era algo que não parecia ser meramente minha imaginação, mas também não podia fazer parte da realidade. Meu pai estava morto, nada mudaria isso. Por que então eu estava sempre tantando salvá-lo? Por que era tão doloroso vê-lo afundar cada vez mais rápido e ficar cada vez mais distante do meu abraço? Estava sempre ali, com olhos fechados, com a mesma blusa azul e uma calça velha e rasgada, dobrada até os joelhos. Seu rosto permanecia o mesmo. Mas como? Por que não envelhecia? Já fazia mais de 15 anos! Se era tudo uma mentira e tantos detalhes a entregavam, se já não fazia sentido eu mergulhar e me afundar em busca de um amor paterno que não existia senão em lembranças, por que eu insistia em salvá-lo? Eu chorava desesperadamente, confusa, desconsolada. Estava perdendo-o de novo. Até quando aquilo se repetiria? A perda é algo com o qual não se acostuma. Você perde uma pessoa, mas quando perde uma outra, sente a mesma dor. Não existe um aprendizado ou algo que anestesie o sofrimento. Perder o mesmo ente querido várias vezes era o pior castigo que eu poderia receber. Só que havia algo diferente! O mar quente era tocável, não era mais leve como o ar e estava quente, aquela sensação térmica era incrível! Olhei bem para meu pai e decidi ser a última vez que sonharia com ele. Eu jamais quis tirá-lo de minhas lembranças, mas percebi o quanto elas me doíam da forma como eu as memorizava. Olhei fixamente para seu rosto, para lembrá-lo, pela última vez. Foi quando aquele cadáver abriu os olhos para mim e sorriu. Definitivamente não era um sonho como os outros: era o sonho dos meus sonhos. Apenas tentei ficar onde estava, olhando pra ele assustada, chorando, rindo, sentindo saudades. As águas-vivas o empurravam de volta. Não sei dizer se eu afundava ou se ele vinha em minha direção, mas nos aproximávamos cada vez mais. Seu sorriso era o mesmo do dia em que me ensinou a nadar, o mesmo que aparecia em seu rosto quando me comparava com as criaturas marinhas. Era aquele que eu procurei a vida inteira e cuja lembrança me confortou em cada momento difícil pelo qual passei. Quando o homem ficou finalmente à minha frente, me abraçou. Me beijou a testa e pude ler em seus lábios, que não emitiam som algum: “Obrigado. Eu te amo”. E afundou novamente. Não fui atrás, fiquei observando-o. Ele estava feliz e as luzes ao seu redor me cegavam. As águas-vivas estavam eufóricas, como se comemorassem. A luz ficou mais forte e não pude mais vê-lo. Ela se apagou, de repente, e ele já não estava mais lá. Quando nadei de volta para a margem, estava aliviada. A culpa que me perseguiu a vida inteira havia desaparecido. Pela primeira vez havia encontrado a felicidade. Não alegria, que é momentânea. Mas a felicidade plena, a ausência de um desconforto que me matava. Via a minha mãe, meus irmãos pequenos rindo e me chamando. Fui em direção a eles. Poderíamos jantar juntos, sem a dor ao olhar a cadeira vazia onde se sentava meu pai. Acordei, então, com a sensação inédita de que, definitivamente, estava feliz.

Exercício do diálogo - Manuela

O diálogo:

-Falei com ele, cara. Ele já sabia que eu gostava dele porque a Alessandra contou.

-E o que ele disse?

- Que eu era muito nova, mas que eu era como uma irmãzinha pra ele. Eu nunca chorei tanto, cara. Na frente dele mesmo.

Não conseguia dormir. Nos últimos dias, acordava todas as manhãs às 5. A ansiedade me matava. Eu só adormecia depois de me lembrar de cada momento do dia que havia passado com meu técnico e acordava pensando no instante em que o veria. Minha paixão se tornara doentia. Cada olhar, cada carinho que me fazia, cada cuidado e preocupação que aquele homem tinha por mim era como gotas de veneno que eu tomava. Eu me embriagava com todo aquele sentimento. Era como se não vivesse nunca, me perguntavam como havia sido meu dia e eu simplesmente não me lembrava. As únicas lembranças que tinha eram dos treinos, do jeito que ele me tocava pra corrigir algum movimento errado enquanto eu me alongava, da sua voz grossa e ao mesmo tempo tão doce ao se dirigir a mim e do modo como me olhava, cheio de ternura. Os dias se passavam e uma vontade de me declarar e de pagar pra ver oq ue aconteceria crescia em progressão geométrica. Essa vontade de me jogar, de me render à aventura e ceder ao risco de levar um fora (que me parecia cada vez mais improvável) dobrava a cada vez que ele me tratava daquele modo terno que só um amante trata a mulher amada. Foi em uma sexta-feira que decidi abrir o jogo. Ao final do treino, logo após as outras 4 garotas irem embora, resolvi agir. Chamei-o pra conversar e contei que me sentia diferente. Abusei de metáforas e de enrolações. Dizia-lhe que estava sentindo algo que jamais sentira por alguém e que era como se na sua ausência me faltasse o ar, ou pior: o mar. Foi no auge do meu discurso que descobri o que estava se passando em sua mente. Ele me interrompeu dizendo que sentia o mesmo por mim. Mas para o fim de minha alegria, completou dizendo que eu era a filha que ele nunca teve. Quando se deu conta de que havia somente 15 anos de diferença entre nós, corrigiu: “Na verdade, você é como uma irmã mais nova por quem tenho muito carinho e vontade de cuidar”. Eu quis morrer. Quis matá-lo. Quis matá-lo e morrer em seguida, pois sabia que não viveria sem ele. Apesar disso, fingi gostar do que havia ouvido. Abracei-o e me retirei. Chegando ao meu quarto, chorei até adormecer sem me dar conta.

Exercício do diálogo - Ludmilla


Naquele dia, após o passeio por ruas e calçadas, não houve quem conseguisse falar. Das conversas entrecortadas que ouviram, passantes, aos barulhos do mundo sem fala, de tudo, formou-se um emaranhado de sons palavras sem distinção entre o que cada uma havia escutado: vozes zigue-zagues vezes três, trêêzz, la mia ombra si spaventò,, ventava outra língua, della luna, o sol escaldava palavras em torno das meninas palavras cruzadas encruzilhada audição seis orelhas para cada uma cabeça, e si rannicchio tra i piedi, passava o caminho, homens chiamavam “Teresa!”, começava o movimento confuso, o funcionamento somado feito fossem uma, avançavam e passando pegavam cada som do caminho e o caminho para trás ficava em silêncio. Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo.




(O trecho em italiano quer dizer: “a minha sombra se espantou com a lua e se recolheu sob os meus pés”, e foi tirado do livro Prima Che tu dica de Italo Calvino)

Texto de Ludmilla

Impossível afirmar se é imprecisa ou fora de alcance humano, essa visão. Como se capturada através de um aparelho que, tamanho o impacto da imagem avistada, passasse a atuar desgovernado: o foco oscilante entre os vértices, as faces e a figura opaca – triângulo?

Há uma, duas, três. Uma, outra e a terceira, média, soma de metades opostas. Seriam trigêmeas ou três conhecidas de mesma idade? Meninas, cuja experiência somada-dividida contribuiu para talhar a face de cada uma em moldes distantes da aparência comum aos seres de dez anos de vida. A marcação sutil em seu aspecto físico não é, contudo, o traço denunciador dessa formação tríplice: antes constitui seu véu ou disfarce. Não é corriqueiro notar nas meninas, isoladas, qualquer aspecto mais estranho que um fio de cabelo reluzente, branco, as vozes acrescidas de um grave incomum, o caminhar compassado de quem já não percorre o mundo embrulhado em novidade. Não são desbravadores os seus olhares e o ritmo das respirações ignora o que quer que se assemelhe aos estados de euforia e curiosidade. São meninas, e é alguma coisa plantada justo no centro de suas naturezas infantis o que mais parece atrair o observador atento que tenha, por acaso ou por ventura, deparado com as densas nuvens daqueles olhos. Nebulosas.

Suficientemente próximas, à luz e inclinação de olhar determinados, projetam algo mais do que a sombra alongada no chão. Cresce outro corpo. Diante do contemplador, o somatório improvável, uma mulher ou formação estelar feita de escuros e luzes. Os olhos desse que contempla, perturbados desafiados, não conseguem distinguir a imagem, não se atêm a nenhum dos pontos-meninas de que é formada, não fixam em nada e estão atordoados. Oscila inconstante o foco. Embaçam as lentes do aparelho de visão. Nos ouvidos, embaçados, o eco de uma explosão distante.

...

Ainda não é chegado o momento em que se desvenda de onde vêm as meninas, para onde seguirão, se juntas, separadas, se a idade avançada triplicada vai demarcar-lhes o fim igual, ou se é a desvinculação de uma, alguma, que vai desintegrar esse equilíbrio instável. Não se sabe do laço imune a nomeações de parentesco ou amizade entre as meninas, se era seu pai ou tutor o artesão de molduras; com quem aprenderam a dança, não se sabe. Será se, em três, são vértices unidos em fio? É um eixo o que as une, um centro - hélices? Que forças? Movimento circular de ponteiros marcando segundos horas minutos é o que são? Têm, ao lado dos anos, outra velocidade a medir seu tempo? Giram, constantes, as interrogações. Não avistam resposta e expõem, mais forte a energia do giro, sua pergunta maior: que intenções atravessam este começo, o começo do evento? Escurece o céu e num espaço mais escuro ainda, no espaço enorme, universo, o eco é mais forte e próximo.

terça-feira, 31 de março de 2009

Texto do André Luiz (reescrito)

O Destino de um Estradivárius

Sempre cri na possibilidade de se evadir de um destino adverso às nossas vontades, um destino do qual gostaríamos de fugir de qualquer maneira. Sim, para os humanos isto é perfeitamente factível, pois, como disse meu nobre conterrâneo, Maquiavel, somente a virtude mostra-se eficaz contra um possível infortúnio. De fato, invejo os homens, que, ao contrário de mim, tem o mundo à mercê de suas vontades, bastando um espírito sagaz e uma tenacidade exemplar para atingirem seus fins. No meu caso, para valer-me de meus dons naturais, aliás, um dos melhores que há no mundo da música, dependo das mãos de um exímio violinista, assim atingindo meu potencial completo.

Grande luthier que me fez, o senhor Stradivari. Minha singularidade advém não somente da qualidade dos sons que produzo, mas pelo próprio fato de que sou um dos poucos de minha linhagem ainda vivos e apesar de minha idade avançada, ainda não cheguei a cumprir meu papel óbvio e fundamental: o de extasiar platéias e ganhar em troca ovações retumbantes para mim e minha “metade”. Minha vontade se equipara a dos humanos, mas eis que sou refém da sorte, assim é a vida.

O seguinte fato mudou minha percepção de que os humanos estão acima das rodas da fortuna. Na oficina onde fico, chegaram dois músicos, ambos interessados em possuir-me. Meu preço, é claro, era proibitivo, sendo que só um dos músicos gozava de luxo de poder compra-me (tocava numa famosa filarmônica em Turim), mas, em contra partida, carecia da destreza que eu achava digna para mim. O outro padecia do caso oposto: tirava de mim belos acordes, arpegios, improvisos, mas faltava-lhe recursos para a compra. Eu me encontrava no meio do dilema. Meu ego exigia que me fossem pagos não menos que 500 mil euros, mas, ao mesmo tempo, que seria de mim nas mãos de um músico indigno ou até mesmo nas mãos de um colecionador, que me exibiria como um reles troféu? Optei pela segunda hipótese, finalmente. Pena que os fados, contrariaram meu desejo e o do segundo músico, é claro. O som das moedas de ouro (o primeiro músico pagou desta forma, creio que havia tantas quantas para encher um baú) foi mais belo do que o som que o segundo músico havia tirado de mim. O homem esbravejou, na tentativa de demover o vendedor de me entregar a mãos indignas. Dizia que era o único apto a tirar o máximo de minhas qualidades. Tocava para corroborar suas afirmações. Tudo em vão. Saiu desconsolado em contraste com o primeiro músico, que se deliciava com a desgraça do companheiro de profissão.

Desde então, perdi a crença de que a vontade por si só basta para transformar sonhos em algo concreto. Nem mesmo a maior destreza pode se dar ao luxo de vir desacompanhada de um pouco de sorte. Talvez a suposição de que quem é mais abastado desfruta de uma sorte maior não seja no todo incorreta. Os tempos mudaram desde Maquiavel. Há forças muito maiores do que a simples virtude e vontade e disso não podemos correr, nem mesmo os homens, quanto menos eu.