Oficina Literária

Oficina Literária é uma disciplina do TEL ministrada pela professora Elizabeth Hazin

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Sonho da Laís

Apesar de ansiosa, o sono vinha sem delongas. Com os olhos semicerrados, lutava para permanecer em vigília. Queria estar desperta quando o navio ancorasse no Brasil! Meu corpo ia aos poucos pedindo o descanso e contra minha vontade, eu já estava completamente sonolenta. O barulho da água batendo na embarcação era a minha canção de ninar. Aos poucos, meus pensamentos se condensaram como o vapor de água que saia da chaleira quando faziam chá de lakka em Helsinque.

Uma porta de madeira pintada em branco se abriu vagarosamente. De dentro emanava uma luz forte, um clarão amarelado que tornava impossível distinguir o que havia dentro do cômodo. Como o mar no Antigo Testamento que abriu caminho para Moisés e seu povo passarem, a luz se dispersou e deixou uma reta. Por esse caminho, uma mulher, flutuando, veio em direção à porta branca. Vestia uma túnica grega decorada com uma larga variedade de cores: amarelo, violeta, vermelho, roxo e dourado. A mulher era alva, seu nariz, longo e pontudo – algo que certamente afirmava expressividade à sua figura - e seus cachos escuros eram tais quais espirais que se entrelaçavam e pareciam compor naturalmente um nobre penteado. Seu semblante lembrava aconchego: o olhar maternal era doce e calmante, os finos lábios desenhavam um sorriso contido que pareciam convidar quem quer que estivesse à sua frente para o seu colo e até mesmo a inclinação do seu rosto assemelhava-se a leite quente antes de dormir. Os braços da tal mulher estavam abertos e uma luz estranha emanava do seu corpo da mesma forma que eu sempre imaginei que emanasse da forma física de um santo ou de qualquer outra divindade cristã. Era como se essa luz fosse uma materialização de bondade e eternidade. Uma mulher diferente, mais nova, se jogava nos braços da primeira e a mesma claridade rodeava o corpo da outra. Que estranho! A mais nova parecia ser...eu. Eu?

Acordei assustada e, ao digerir o sonho estranho que me fez despertar, em pouco tempo me dei conta de que não só era eu a mulher mais nova, mas também a outra criatura parecia ter o rosto que eu sempre imaginei que fosse da minha mãe. Que engraçado... estava tão ansiosa para minha chegada aos trópicos e, assim, enfim conhecer minha mãe, que até mesmo os sonhos esse meu estado impaciente interrompia.

Sonho da Ludmilla

Todas as luzes do mundo, apagadas. Só a luzinha que emana do corpo de cada uma menina, fios trançados no ar saindo de dentro daqueles sonos, ilumina.

O teto descolado das paredes começa a subir. Não descola um lustre de vidro que sobe também, agora sem brilho porque a luz apagada. Meus olhos no lustre, as paredes sem teto do quarto embaixo e a cama. Alguém dormindo, diminuindo diminuindo. Embaixo do cômodo a casa e a rua, menores, ruídos de paredes ruindo, duas ainda em pé flutuam no espaço escuro e cinza. Afastam. Da superfície, tudo começa a soltar-se em níveis, lentos, subindo; ruem alicerces e raízes de todos os chãos. Na cama o corpo ou a sombra do corpo. Vejo do alto, vejo a frente e as costas de quem dorme irreconhecível, e diminui mais, mais rápido, menor, tão veloz vira um ponto luminoso, desvia dos olhares de cada parede voando, vai. Tudo escurece.

Dormem profundas. Um tenso movimento aproxima seus fios, hesitantes ainda em convergir no ponto. Respiram pesadas, como faltasse o ar.

Uma sala muito branca, muito branca, não sei se enorme. Se são paredes, lençóis ou gigantes folhas de papel, não sei, sua brancura em volta engole sofás lustres e mesas, todos os objetos, sem formas, seus volumes perdidos, engolidos no branco. Um balde de tinta alcança-me as mãos, vem um pincel, dispara a ação e uma mancha. O risco rasgando o branco escorre a sangue. Há espaços de segundos e tenho um balde amarelo, comigo o pincel faz novo risco. Não vejo o lugar das tintas, não intuo a que vêm ou o onde em que desaparecem. Intervalos mais rápidos, mais escuros, envolvem a tudo em sombras, cinzas, cores de escuro, de novo o branco e outro balde de tinta nas mãos. Abandonam-me o pincel e os traços. Joga o balde a tinta na parede, eu segurando o balde, o conteúdo verde escuro, seguem gradações de verde e seus barulhos lançados no quadrado. Outro universo, pairando, abriga vozes e rostos translúcidos, ganha volume uma música. Vêm os azuis, outros sons. Tilintam esparramadas cores, espessas cordas, dedilhados os traços a quantas mãos?, acordes pintados, pintando, não é a formação de cores a intenção última dessas tintas. O contato ritmado, cadente, cada tinta um som. As manchas ressoam, eu segurando os baldes, quem faz a música? Vem outro vermelho, passa por mim e atira no canto concentrado de amarelos e laranjas. O estrondo maior. Tudo: silêncio cinza.

Afundam, imersas nos sonos. O espaço escuro é do tamanho da vida. Tudo que já se viu ou tocou está lá, no dentro do sonho, tudo e as pessoas.

... não encontro portas fechando a passagem, erro as entradas e saídas como se não fosse minha a casa. O corredor anda em voltas, dobras, o corredor infinito. Há um retrato familiar de alguém que nunca vi e que me olha, sabendo-me. O corredor avança seu traço, trazendo outros retratos e seus nomes, tão habituados ao meu chamado, acompanham rostos estranhos. Evoco a foto mais próxima e um retrato trocado, longe, responde. Nomes desprendidos de pessoas foram juntar-se a outras, nomes perdidos de donos, soltos das faces, subtraídos das ações. Nenhuma voz habita a conversa de lá, ninguém toca a música vinda das paredes ou de cima. Os passos que alguém deixou continuam, sozinhos, seu curso. Embaralhado no corredor o caminho, o caminho indo, embaralhando-me, eu a embaralhar-me-ando mais. Cada passo traz uma moldura preenchida, quadros de tinta fresca escorrendo gritos harmoniosos. Meus passos ecoam os passos de alguém, atrás. Surgem espelhos e janelas em outras paredes, surgem e não iluminam o ambiente opaco. Eu, e tudo, em cores de sombra. O caminho é apressado pela presença atrás, passa sem ver os reflexos nos espelhos ou que vistas das janelas. Corro, o ar pesado e escasso. Respiram quadros paredes desconhecido e caminho, respiram o ar não renovado que diminui e pesa. Falta o ar da corrida, falta ar, corro, o ar. Sem ar, (). Ando. O caminho me arrasta até parar em frente a outra parede, seu espelho e janela. Ainda sinto o corpo atrás de mim, à espreita, não consigo mover o caminho e a parede escura, lenta, se aproxima. Da janela aberta, o mundo nos ares: ruas, construções, árvores, arquipélagos, animais florestas pensamentos elevados, desviando de nuvens. O mundo suspenso. Vira, mirando-me, o espelho, mas não mostra meu rosto, rosto nenhum de gente. Reflete o incomum corpo que me segue, me olha sem olhos e sem pernas vem vindo, aproximando. Nada vejo e é uma visão, sim, porque vejo, não sei dizer, mas vejo, e sei, no escuro. No escuro, há um limiar. Aquela presença é a consciência saltada de seu corpo.

Os fios de dentro dos sonhos saem, aceleram, unem entre as sombras e desviam voando, vão. Os fios pra dentro do sonho mergulham, abrem um buraco e o espaço enorme agora desfeito em denso líquido gira, escoa veloz e verde segue girando, ressoa ecos da música, escoa em círculos, regira no escuro, vai. Despertam de um salto as três meninas.

domingo, 12 de abril de 2009

Sonho - Manuela

O último sonho

O mar estava quente. Eu estava, como sempre, mergulhada bem longe da praia. Estava no exato local onde estive com meu pai pela última vez. Mas, dessa vez, podia sentir até o cheiro da água salgada. Tudo parecia muito real. Tentei tocar as rochas. Pude senti-las e isto me assustou. O dia estava indo embora e o sol poente, visto do fundo do mar era, agora, uma mancha alaranjada embaçada, que oscilava e desparecia aos poucos. Eu tinha pressa, ele estava afundando. Meu pai descia e não respirava mais, eu sabia, mas eu precisava alcançá-lo. As águas-vivas estavam lá, seguravam-no como se freiassem a sua queda. Havia o brilho ao redor dele e emanava delas. Era uma luz insuportavelmente forte, mas sem ela não seria possível enxergar nada àquela hora. Aquele homem caía com os olhos fechados e as roupas que nunca foram trocadas. Toda aquela cena, com apenas uma ou outra mudança, se repetia a cada noite em todos os meus sonhos. Mas agora estava diferente. Era algo que não parecia ser meramente minha imaginação, mas também não podia fazer parte da realidade. Meu pai estava morto, nada mudaria isso. Por que então eu estava sempre tantando salvá-lo? Por que era tão doloroso vê-lo afundar cada vez mais rápido e ficar cada vez mais distante do meu abraço? Estava sempre ali, com olhos fechados, com a mesma blusa azul e uma calça velha e rasgada, dobrada até os joelhos. Seu rosto permanecia o mesmo. Mas como? Por que não envelhecia? Já fazia mais de 15 anos! Se era tudo uma mentira e tantos detalhes a entregavam, se já não fazia sentido eu mergulhar e me afundar em busca de um amor paterno que não existia senão em lembranças, por que eu insistia em salvá-lo? Eu chorava desesperadamente, confusa, desconsolada. Estava perdendo-o de novo. Até quando aquilo se repetiria? A perda é algo com o qual não se acostuma. Você perde uma pessoa, mas quando perde uma outra, sente a mesma dor. Não existe um aprendizado ou algo que anestesie o sofrimento. Perder o mesmo ente querido várias vezes era o pior castigo que eu poderia receber. Só que havia algo diferente! O mar quente era tocável, não era mais leve como o ar e estava quente, aquela sensação térmica era incrível! Olhei bem para meu pai e decidi ser a última vez que sonharia com ele. Eu jamais quis tirá-lo de minhas lembranças, mas percebi o quanto elas me doíam da forma como eu as memorizava. Olhei fixamente para seu rosto, para lembrá-lo, pela última vez. Foi quando aquele cadáver abriu os olhos para mim e sorriu. Definitivamente não era um sonho como os outros: era o sonho dos meus sonhos. Apenas tentei ficar onde estava, olhando pra ele assustada, chorando, rindo, sentindo saudades. As águas-vivas o empurravam de volta. Não sei dizer se eu afundava ou se ele vinha em minha direção, mas nos aproximávamos cada vez mais. Seu sorriso era o mesmo do dia em que me ensinou a nadar, o mesmo que aparecia em seu rosto quando me comparava com as criaturas marinhas. Era aquele que eu procurei a vida inteira e cuja lembrança me confortou em cada momento difícil pelo qual passei. Quando o homem ficou finalmente à minha frente, me abraçou. Me beijou a testa e pude ler em seus lábios, que não emitiam som algum: “Obrigado. Eu te amo”. E afundou novamente. Não fui atrás, fiquei observando-o. Ele estava feliz e as luzes ao seu redor me cegavam. As águas-vivas estavam eufóricas, como se comemorassem. A luz ficou mais forte e não pude mais vê-lo. Ela se apagou, de repente, e ele já não estava mais lá. Quando nadei de volta para a margem, estava aliviada. A culpa que me perseguiu a vida inteira havia desaparecido. Pela primeira vez havia encontrado a felicidade. Não alegria, que é momentânea. Mas a felicidade plena, a ausência de um desconforto que me matava. Via a minha mãe, meus irmãos pequenos rindo e me chamando. Fui em direção a eles. Poderíamos jantar juntos, sem a dor ao olhar a cadeira vazia onde se sentava meu pai. Acordei, então, com a sensação inédita de que, definitivamente, estava feliz.

Exercício do diálogo - Manuela

O diálogo:

-Falei com ele, cara. Ele já sabia que eu gostava dele porque a Alessandra contou.

-E o que ele disse?

- Que eu era muito nova, mas que eu era como uma irmãzinha pra ele. Eu nunca chorei tanto, cara. Na frente dele mesmo.

Não conseguia dormir. Nos últimos dias, acordava todas as manhãs às 5. A ansiedade me matava. Eu só adormecia depois de me lembrar de cada momento do dia que havia passado com meu técnico e acordava pensando no instante em que o veria. Minha paixão se tornara doentia. Cada olhar, cada carinho que me fazia, cada cuidado e preocupação que aquele homem tinha por mim era como gotas de veneno que eu tomava. Eu me embriagava com todo aquele sentimento. Era como se não vivesse nunca, me perguntavam como havia sido meu dia e eu simplesmente não me lembrava. As únicas lembranças que tinha eram dos treinos, do jeito que ele me tocava pra corrigir algum movimento errado enquanto eu me alongava, da sua voz grossa e ao mesmo tempo tão doce ao se dirigir a mim e do modo como me olhava, cheio de ternura. Os dias se passavam e uma vontade de me declarar e de pagar pra ver oq ue aconteceria crescia em progressão geométrica. Essa vontade de me jogar, de me render à aventura e ceder ao risco de levar um fora (que me parecia cada vez mais improvável) dobrava a cada vez que ele me tratava daquele modo terno que só um amante trata a mulher amada. Foi em uma sexta-feira que decidi abrir o jogo. Ao final do treino, logo após as outras 4 garotas irem embora, resolvi agir. Chamei-o pra conversar e contei que me sentia diferente. Abusei de metáforas e de enrolações. Dizia-lhe que estava sentindo algo que jamais sentira por alguém e que era como se na sua ausência me faltasse o ar, ou pior: o mar. Foi no auge do meu discurso que descobri o que estava se passando em sua mente. Ele me interrompeu dizendo que sentia o mesmo por mim. Mas para o fim de minha alegria, completou dizendo que eu era a filha que ele nunca teve. Quando se deu conta de que havia somente 15 anos de diferença entre nós, corrigiu: “Na verdade, você é como uma irmã mais nova por quem tenho muito carinho e vontade de cuidar”. Eu quis morrer. Quis matá-lo. Quis matá-lo e morrer em seguida, pois sabia que não viveria sem ele. Apesar disso, fingi gostar do que havia ouvido. Abracei-o e me retirei. Chegando ao meu quarto, chorei até adormecer sem me dar conta.

Exercício do diálogo - Ludmilla


Naquele dia, após o passeio por ruas e calçadas, não houve quem conseguisse falar. Das conversas entrecortadas que ouviram, passantes, aos barulhos do mundo sem fala, de tudo, formou-se um emaranhado de sons palavras sem distinção entre o que cada uma havia escutado: vozes zigue-zagues vezes três, trêêzz, la mia ombra si spaventò,, ventava outra língua, della luna, o sol escaldava palavras em torno das meninas palavras cruzadas encruzilhada audição seis orelhas para cada uma cabeça, e si rannicchio tra i piedi, passava o caminho, homens chiamavam “Teresa!”, começava o movimento confuso, o funcionamento somado feito fossem uma, avançavam e passando pegavam cada som do caminho e o caminho para trás ficava em silêncio. Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo.




(O trecho em italiano quer dizer: “a minha sombra se espantou com a lua e se recolheu sob os meus pés”, e foi tirado do livro Prima Che tu dica de Italo Calvino)

Texto de Ludmilla

Impossível afirmar se é imprecisa ou fora de alcance humano, essa visão. Como se capturada através de um aparelho que, tamanho o impacto da imagem avistada, passasse a atuar desgovernado: o foco oscilante entre os vértices, as faces e a figura opaca – triângulo?

Há uma, duas, três. Uma, outra e a terceira, média, soma de metades opostas. Seriam trigêmeas ou três conhecidas de mesma idade? Meninas, cuja experiência somada-dividida contribuiu para talhar a face de cada uma em moldes distantes da aparência comum aos seres de dez anos de vida. A marcação sutil em seu aspecto físico não é, contudo, o traço denunciador dessa formação tríplice: antes constitui seu véu ou disfarce. Não é corriqueiro notar nas meninas, isoladas, qualquer aspecto mais estranho que um fio de cabelo reluzente, branco, as vozes acrescidas de um grave incomum, o caminhar compassado de quem já não percorre o mundo embrulhado em novidade. Não são desbravadores os seus olhares e o ritmo das respirações ignora o que quer que se assemelhe aos estados de euforia e curiosidade. São meninas, e é alguma coisa plantada justo no centro de suas naturezas infantis o que mais parece atrair o observador atento que tenha, por acaso ou por ventura, deparado com as densas nuvens daqueles olhos. Nebulosas.

Suficientemente próximas, à luz e inclinação de olhar determinados, projetam algo mais do que a sombra alongada no chão. Cresce outro corpo. Diante do contemplador, o somatório improvável, uma mulher ou formação estelar feita de escuros e luzes. Os olhos desse que contempla, perturbados desafiados, não conseguem distinguir a imagem, não se atêm a nenhum dos pontos-meninas de que é formada, não fixam em nada e estão atordoados. Oscila inconstante o foco. Embaçam as lentes do aparelho de visão. Nos ouvidos, embaçados, o eco de uma explosão distante.

...

Ainda não é chegado o momento em que se desvenda de onde vêm as meninas, para onde seguirão, se juntas, separadas, se a idade avançada triplicada vai demarcar-lhes o fim igual, ou se é a desvinculação de uma, alguma, que vai desintegrar esse equilíbrio instável. Não se sabe do laço imune a nomeações de parentesco ou amizade entre as meninas, se era seu pai ou tutor o artesão de molduras; com quem aprenderam a dança, não se sabe. Será se, em três, são vértices unidos em fio? É um eixo o que as une, um centro - hélices? Que forças? Movimento circular de ponteiros marcando segundos horas minutos é o que são? Têm, ao lado dos anos, outra velocidade a medir seu tempo? Giram, constantes, as interrogações. Não avistam resposta e expõem, mais forte a energia do giro, sua pergunta maior: que intenções atravessam este começo, o começo do evento? Escurece o céu e num espaço mais escuro ainda, no espaço enorme, universo, o eco é mais forte e próximo.

terça-feira, 31 de março de 2009

Texto do André Luiz (reescrito)

O Destino de um Estradivárius

Sempre cri na possibilidade de se evadir de um destino adverso às nossas vontades, um destino do qual gostaríamos de fugir de qualquer maneira. Sim, para os humanos isto é perfeitamente factível, pois, como disse meu nobre conterrâneo, Maquiavel, somente a virtude mostra-se eficaz contra um possível infortúnio. De fato, invejo os homens, que, ao contrário de mim, tem o mundo à mercê de suas vontades, bastando um espírito sagaz e uma tenacidade exemplar para atingirem seus fins. No meu caso, para valer-me de meus dons naturais, aliás, um dos melhores que há no mundo da música, dependo das mãos de um exímio violinista, assim atingindo meu potencial completo.

Grande luthier que me fez, o senhor Stradivari. Minha singularidade advém não somente da qualidade dos sons que produzo, mas pelo próprio fato de que sou um dos poucos de minha linhagem ainda vivos e apesar de minha idade avançada, ainda não cheguei a cumprir meu papel óbvio e fundamental: o de extasiar platéias e ganhar em troca ovações retumbantes para mim e minha “metade”. Minha vontade se equipara a dos humanos, mas eis que sou refém da sorte, assim é a vida.

O seguinte fato mudou minha percepção de que os humanos estão acima das rodas da fortuna. Na oficina onde fico, chegaram dois músicos, ambos interessados em possuir-me. Meu preço, é claro, era proibitivo, sendo que só um dos músicos gozava de luxo de poder compra-me (tocava numa famosa filarmônica em Turim), mas, em contra partida, carecia da destreza que eu achava digna para mim. O outro padecia do caso oposto: tirava de mim belos acordes, arpegios, improvisos, mas faltava-lhe recursos para a compra. Eu me encontrava no meio do dilema. Meu ego exigia que me fossem pagos não menos que 500 mil euros, mas, ao mesmo tempo, que seria de mim nas mãos de um músico indigno ou até mesmo nas mãos de um colecionador, que me exibiria como um reles troféu? Optei pela segunda hipótese, finalmente. Pena que os fados, contrariaram meu desejo e o do segundo músico, é claro. O som das moedas de ouro (o primeiro músico pagou desta forma, creio que havia tantas quantas para encher um baú) foi mais belo do que o som que o segundo músico havia tirado de mim. O homem esbravejou, na tentativa de demover o vendedor de me entregar a mãos indignas. Dizia que era o único apto a tirar o máximo de minhas qualidades. Tocava para corroborar suas afirmações. Tudo em vão. Saiu desconsolado em contraste com o primeiro músico, que se deliciava com a desgraça do companheiro de profissão.

Desde então, perdi a crença de que a vontade por si só basta para transformar sonhos em algo concreto. Nem mesmo a maior destreza pode se dar ao luxo de vir desacompanhada de um pouco de sorte. Talvez a suposição de que quem é mais abastado desfruta de uma sorte maior não seja no todo incorreta. Os tempos mudaram desde Maquiavel. Há forças muito maiores do que a simples virtude e vontade e disso não podemos correr, nem mesmo os homens, quanto menos eu.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Texto da Juliana

Emile

Já na entrada pode-se sentir o cheiro do cupim por entre madeiras molhadas de um bolor sem cor e contínuo. O numero 53 na porta é de um enferrujado cor de cobre, quase lembra a terra seca da casa de mamãe. A tentativa inoportuna de viver da Samambaia traga o último suspiro de aurora do corredor estreito e denuncia minha suspeita de que Emile já não sai de casa a dias.

Minha entrada é de um silêncio misturado, não enxergo nada além de um capacho torto que marca o sinteco gasto pelos anos. Emile está imóvel frente a um raio fraco de sol que entra pela janela – Traga-me um copo d’água minha irmã. – Consigo ver papai naquele rosto pálido e me pergunto se Sebastian retorce na cova em dias como este. Emile mora com simplicidade e o bege sufoca quando respiro. – Emile, Aurora estaria desesperada em morar aqui. – Emile nem vira o rosto e bebendo o copo d’água levanta as sobrancelhas como num gesto de indiferença. Dali se passavam exatos 7 anos que Aurora falecera e a ausência de sua esposa matava meu irmão lentamente.

Dei-lhe um beijo na testa e o ajudei a levantar-se. Emile já tinha dificuldades em andar e agravava isto a cada dia recusando-se a fazer exercícios recomendados pelo medico, como caminhar na Pampulha ou ir á missa aos Domingos, Emile tornara-se menos religioso e não aceitava a bondade de Deus, era um homem velho que exalava um pretume fétido de um século passado.

Não me orgulho de ser distante, nos meus 68 anos me considero ainda disposta, sobretudo frente a meus filhos e marido que prezo por serem castos frente à essa nostalgia indiscreta de meu irmão sobrevivente. Hoje é 2 de setembro de 1938 e me comprometi em levar Emile para visitar sua filha Mercedes no Rio de Janeiro. Não, não pretendo ir até lá, meus Réis deram apenas para um assento na Panair, Emile precisa sair de casa.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Texto da Laís

Com a mão inclinada em direção ao rosto, eu escuto o sermão de um homem energético. A voz imponente,
o movimento ritmado das mãos que rege a fala furiosa e as feições tão viris estragadas pelo semblante de ódio e o olhar
que rasga todo o resto de dignidade que eu ainda reservava no meu peito me fazem tremer de ansiedade...uma sensação
difícil de desenhar; um sentimento nervoso que surge da segurança que tenho de nunca ter merecido o homem que agora me
corta. Sorte existe e me foi concebida. E esse momento era esperado...não como uma mãe espera a chegada do seu fruto. A minha espera foi devagar, doída, recusada. Mas se existe Sorte também existe destino. E apesar de
limitada, eu posso ser sensata. Posso? Apenas duas certezas passearam pela minha mente durante o desenrolar dos meses que ocorreram desde o meu encontro com a Sorte: aquele, esse Astro é a coisa mais bonita, encantadora, e enigmática que os meus olhos já registraram e eu não o mereço.

A hora chegou.

Texto da Manuela

Nadadora

Comecei a nadar aos seis anos de idade, quando, depois de várias consultas a inúmeros médicos, a natação foi a solução encontrada por meu pai, para as minhas freqüentes crises asmáticas. Nós morávamos em uma pequena cidade praiana do estado do Rio de Janeiro chamada Araruama, localizada a pouca mais de 110 km da capital.

Meu pai era um humilde e simpático pescador, que conquistava qualquer um com quem conversasse. Me lembro que ele chegava sempre após o pôr-do-sol com sua canoa e a rede nas mãos. Eu o via pela janela lá de casa, que ficava em cima de um morro, de onde se tinha uma belíssima vista da praia, dos outros morros detrás do oceano e do céu. Eu sempre o esperava ansiosa. Havia sempre uma surpresa pra mim: podia ser um peixe de cores que eu jamais havia visto, ou algo que ele fingia ter pego no fundo do oceano (embora eu soubesse que havia pego na praia mesmo).

De longe, os presentes que eu mais gostava eram as águas-vivas. Eles as trazia em baldes e as colocava na minha mão, me ensinando como pegá-las sem que me queimasse. E quando me pegava admirando-as, dizia que eu deveria ser como elas, graciosas, encantantes, reservadas. Deveria, principalmente, ter o seu fôlego. Contava que, na verdade, elas eram seres terrestres, mas amantes da água o suficiente para passarem a maior parte do seu tempo dentro da água, indo de vez em quando para a areia respirar um pouco. Eu, pequena, acreditava em tudo o que aquele homem, pra mim tão sábio, dizia.

Naquela época, eu quase não saía de casa devido aos meus problemas de saúde. Meu pai, porém, me trazia o oceano todos os dias depois do pôr-do-sol. Aquilo era suficiente pra me deixar com um desejo imenso de ir, eu mesma, atrás daqueles objetos, daqueles tesouros e animais que eu ganhava. Ficava horas imaginando como seria o mundo debaixo das águas verdes do mar que eu só conhecia pela minha janela.

Um belo dia, meu pai decidiu que eu deveria nadar. Dizia ele, seu coração lhe indicava que aquilo me curaria da asma. Convencemos, com muita insistência, minha mãe de me deixar ir pescar com meu pai. Ele não me permitia mentir para ela, mas essa era uma causa muito nobre e sabia que se disséssemos a verdade, nossos planos iriam por água abaixo. Foi então que, em seus braços, mergulhei meu corpo pela primeira vez no mar. Me lembro claramente de cada emoção sentida, do pulsar rápido do meu coração, da alegria, da empolgação e da falta de ar mais feliz que eu havia tido. Perder o fôlego era apenas mais uma entre as milhões de sensações que eu sentia. Era incrível imaginar que eu pudesse estar junto de todos os maravilhosos seres que meu pai me trazia. Podia tocá-los, queria vê-los, sentir seu cheiro. Nesse momento, eu passava a ser um deles. Finalmente havia me transformada na água-viva.

texto da Débora

O dia estava claro, o sol começava a despontar no horizonte e os primeiros reflexos de luz batiam em meu rosto me lembrando que já era hora de levantar. Seria apenas mais um dia comum cheio de atividades rotineiras, acompanhadas – como sempre – por meu melhor amigo Thomas. Mal sabia eu que, dali algumas horas, veria estampado no rosto de Thomas um desespero mudo – de quem não sabia como reagir.

Sobre mim? Cabem algumas explanações. Nasci e fui criado no seio de uma típica família rica britânica, cercado por todos os mimos concedidos a mim por minha condição social. Apesar de não ser filho único, nunca me foi negado nada; tive acesso ao melhor ensino, a melhor educação, aos melhores bailes, ao melhor da minha sociedade. Atrevo-me a dizer que sempre fui o filho preferido, condição essa estabelecida talvez pelo oportuno fato de ter nascido homem.

Era comum, em dias tão belos, que eu e Thomas saíssemos a cavalo por minha propriedade. Nossas cavalgadas eram envoltas em risos, relatos e agradáveis conversas. Nada nunca nos preocupava. Meu cavalo, Wind, era o mais belo e veloz da região.

Em meio a nossa prepotência, ignoramos o conselho dado por um dos camponeses de não ir para certo canto da propriedade, onde um animal selvagem fora visto na noite anterior.

Apostamos corrida até o local e ganhei – graças as velozes patas de Wind. Ao me virar despretensiosamente e descuidadamente para zombar de Thomas, tudo aconteceu – como num piscar de olhos as cenas se transformaram. Wind se assustou com a súbita aparição do animal, ergueu as patas dianteiras e quando me dei conta já estava caído no chão. A fera fugira com a reação do cavalo.

Thomas, já ao meu lado, indagou preocupado:

- O que você está sentindo?

- Quase nada!

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Os risos cessaram, o silêncio predominava.

O dia? Continuava claro, os reflexos de luz continuavam a bater em nossos rostos. Mas já não conseguia mais me levantar.

Aos 17 anos de idade, tragicamente paralítico.

domingo, 22 de março de 2009

Texto da Luciana

A Louca

    Após trinta anos de magistério, exercidos de maneira dedicada, quase apostolar, eis que eu, agora, encontro-me entre ideias distorcidas, lembranças que vêm e vão; confinada em meu sombrio quarto, completamente só.

    Os filhos se foram, cada qual com sua vida, seus sabores e dissabores; o marido adormeceu palidamente em meus braços.

    E eu? Eu estou aqui, confusa. Em alguns momentos disposta, alegre, brincando com as memórias que os bons tempos deixaram; momentos outros, triste, sem reconhecer objetos, pessoas e nem a mim mesma.

    Sombras, luzes, tudo ao meu redor torna-se monstruoso, ás vezes, ou insignificante, sempre.

    Sonhos, visões, devaneios... Preciso sair, preciso fugir de mim, antes que tudo isso me devore!

Viajar, quem sabe? Ir para um lugar distante, desconhecido, onde talvez eu me encontre uma nova razão de viver.

Texto da Tarci

A Aeromoça

Eu preciso organizar minhas meias em pares, meus livros por ordem alfabética, meus discos por preferência de ritmo e enterrar meu diário morto de ex-amores. Por isso nunca acho nem minhas chaves de casa, quanto mais an excuse para rebater um convite nem tão voluntário assim para substituir Katie. Doente?! Assim eu que vou acabar ficando se continuar nessa loucura. Dias sem parar em casa, nesse vai-e-volta sem fim. Ah, maldita gripe dos infernos! (Ou seria maldita Katie fraca dos infernos?) I am never sick! Paixão é doença? Das desculpas mais velhas ela não podia ter sido menos óbvia? Gripe?? Preciso de açúcar, do meu café.

Hoje I will have to grab qualquer coisa no caminho. Saudades da mãe, da casa que cheirava a café e de menos turbulências. Quando foi que a vida ficou assim cronometrada? Acho que o velho sino viu-se na mesma situação e desistiu. Não badalou irritantemente hoje. Marcando o tempo tão sem atrasos, justo hoje ele resolve calar? Podia pelo menos ter notificado. Simplesmente não bateu longe, religiosamente ao alcance dos meus ouvidos, e quando me dei conta já estava pulando da cama. Acordada pelo automático acertei a taça de vinho mais uma vez. Não da para ficar feliz com mais essa mancha vermelha na cama. É como um rosto olhando para mim através do espelho. Ela me encara feia, abusa da minha boa vontade, espalhada pelo lençol. Ela grita comigo e eu a devolvo apenas meu olhar desprezador. Devia olhar assim alguém que já foi especial. Mães ensinam tanta coisa: “Não pegue a primeira chuva da estação”, “não fale com estranhos”, mas elas falham quando esquecem de ensinar a tirar mancha vermelha do lençol ou how to forget um ex-amor, ou pior, a como conviver com eles still.

Quem nos céus would believe que esse terninho creme combina com essa rosa murcha que uso nos cabelos todos os dias? Cabelos lisos, cara pálida, alma ferida, e consigo meu ar fúnebre sem esforço. Perfeita descrição da minha vidinha recently. Ah, mancha vermelha que não sai! Ah, rosa murcha que não fixa!

sábado, 21 de março de 2009

Texto do Pedro


De certo modo, a vida na torre me proporcionou a maturidade infértil de que padecem os eremitas. Minha paralisia absoluta deu conta de, à semelhança dos tutores das escolas sacerdotais, prover-me da faculdade da abstração. Certamente que, no meu caso, às privações que inevitavelmente sofri (às quais os homens chamam “virtudes”), vinha atrelada a execução plena de minha filosofia. Posso, portanto, dizer que tudo quanto me passou ao conhecimento virou abstração.

Não se enganem, e se pensam que com afetos acolhi tal condição, através do mesmo instrumentário devo oferecer-lhes a oposição: o pensamento é uma doença incurável, ou melhor, uma criança que, dentro do útero, se desenvolve perpetuamente sem a graça ou o alívio do nascimento. Ele nada nos soma, nem de nós se apieda. Drena nosso sangue voluptuoso para suas veias parasitas.

No entanto, não invejo os bêbados que se espalham pelas ruas, nem as prostitutas, este mal que infesta as cidades, mas cujos desígnios divinos lhes são desviados. Não invejo os camponeses de vidas simples nem tampouco os religiosos. Invejo os moribundos e os abortados. E mais ninguém.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Texto do André Luiz

O Destino de um Estradivárius

Sempre cri na possibilidade de se evadir de um destino adverso às nossas vontades, um destino do qual gostaríamos de fugir de qualquer maneira. Sim, para os humanos isto é perfeitamente factível, pois, como disse meu nobre conterrâneo, Maquiavel, somente a virtude mostra-se eficaz contra um possível infortúnio. De fato, invejo os homens, que, ao contrário de mim, tem o mundo sob à mercê de suas vontades, bastando um espírito sagaz e uma tenacidade exemplar para atingirem seus fins. No meu caso, para valer-me de meus dons naturais, aliás, um dos melhores que há no mundo da música, dependo das mãos de um exímio violinista, assim atingindo meu potencial completo.

Grande luthier que me fez, o senhor Stradivari. Minha singularidade advém não somente da qualidade dos sons que produzo, mas pelo próprio fato de que sou um dos poucos de minha linhagem ainda vivos e apesar de minha idade avançada, ainda não cheguei a cumprir meu papel óbvio e fundamental: o de extasiar platéias e ganhar em troca ovações retumbantes para mim e minha “metade”. Minha vontade s equipara a dos humanos, mas eis que sou refém da sorte, assim é a vida.

O seguinte fato mudou minha percepção de que os humanos estão acima das rodas da fortuna. Na loja onde fico, chegaram dois músicos, ambos interessados em possuir-me. Meu preço, é claro, era proibitivo, sendo que só um dos músicos (tocava numa famosa filarmônica em Turim), mas, em contra partida, carecia da destreza que eu achava digna para mim. O outro padecia do caso posto: tirava de mim belos acordos, arpegios, improvisos, mas faltava-lhe recursos para a compra. Eu me encontrava no meio do dilema. Meu ego exigia que me fossem pagos não menos que 500 mil euros, mas, ao mesmo tempo, que seria de mim nas mãos de um músico indigno ou até mesmo nas mãos de um colecionador, que me exibiria como um reles troféu? Optei pela segunda hipótese, finalmente. Pena que os fados, contrariaram meu desejo e o do segundo músico, é claro. O som das moedas de ouro (o primeiro músico pagou desta forma, creio que havia tantas quantas para encher um baú) foi mais belo do que o som que o segundo músico havia tirado de mim. O homem esbravejou, gesticulou, na tentativa de demover o vendedor de me entregar a mãos indignas. Dizia que era o único apto a tirar o máximo de minhas qualidades. Tocava para corroborar suas afirmações, tudo por nada. Saiu desconsolado em contraste com o primeiro músico, que se deliciava com a desgraça do companheiro de profissão.

Desde então, perdi a crença de que a vontade por si só basta para transformar sonhos em algo concreto. Nem mesmo a maior destreza pode se dar ao luxo de vir desacompanhada de um pouco de sorte. Talvez a suposição de que quem é mais abastado goza de uma sorte maior não seja no todo incorreta. Os tempos mudaram desde Maquiavel. Há forças muito maiores do que a simples virtude e vontade e disso não podemos correr, nem mesmo os homens, quanto menos eu.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Texto do Fred

Acordei de um sonho bom, não lembro o que sonhava, só lembro que era bom. Meu sono era pesado, hoje ainda é _ quando eu durmo, o que já não é tão freqüente. Naquele dia, despertei com o fechar da porta da sala, mas o que me tirou da cama foi o soluçar de mamãe. Não, não sabia que algo de errado acontecera. Até hoje não sei. Mamãe havia saído do banho minutos atrás, seus cabelos negros e curtos ainda estavam muito molhados, como os seus olhos quando me viu. Na verdade, presumo que chorava, pois só lembro-me do cheiro do bolo recém preparado na cozinha e do brilho da água nos fios escuros daquela que me sobrava. Meu pai morrera. Eu tinha treze anos e mamãe uns trinta. Casaram-se cedo. Eu nasci pouco depois. Não sei se amavam um ao outro, mas a lembrança do cabelo de mamãe me faz crer que sim. Não tive medo de viver sem meu pai, vivera até ali sem outra presença que não a do dinheiro que ele enviava em envelopes parecidos com o em que mamãe recebera a notícia. O carimbo da companhia de trem era o mesmo para todas as cartas. As cargas eram sempre “tratadas com zelo e respeito”. O medo me encontrou minutos depois, quando mamãe disse que eu era o último que restava para ela. Eu tinha treze anos e uma vida dependendo de mim. Decidi, como muitos já decidiram antes, que não morreria. Nunca mais entrei em um trem, uma ferrovia sempre me lembrava os cabelos molhados de mamãe. Escolhi não ter a certeza da morte grudada em trilhos; escolhi voar.

Meu bem, minha noiva querida, espero que entenda que eu preciso fazer este último vôo antes de aceitar o emprego que seu pai me ofereceu no escritório. Vou, mas voltarei pensando em você, pois escolhi não ser como meu pai. Eternamente seu,

Vicente.