O último sonho
O mar estava quente. Eu estava, como sempre, mergulhada bem longe da praia. Estava no exato local onde estive com meu pai pela última vez. Mas, dessa vez, podia sentir até o cheiro da água salgada. Tudo parecia muito real. Tentei tocar as rochas. Pude senti-las e isto me assustou. O dia estava indo embora e o sol poente, visto do fundo do mar era, agora, uma mancha alaranjada embaçada, que oscilava e desparecia aos poucos. Eu tinha pressa, ele estava afundando. Meu pai descia e não respirava mais, eu sabia, mas eu precisava alcançá-lo. As águas-vivas estavam lá, seguravam-no como se freiassem a sua queda. Havia o brilho ao redor dele e emanava delas. Era uma luz insuportavelmente forte, mas sem ela não seria possível enxergar nada àquela hora. Aquele homem caía com os olhos fechados e as roupas que nunca foram trocadas. Toda aquela cena, com apenas uma ou outra mudança, se repetia a cada noite em todos os meus sonhos. Mas agora estava diferente. Era algo que não parecia ser meramente minha imaginação, mas também não podia fazer parte da realidade. Meu pai estava morto, nada mudaria isso. Por que então eu estava sempre tantando salvá-lo? Por que era tão doloroso vê-lo afundar cada vez mais rápido e ficar cada vez mais distante do meu abraço? Estava sempre ali, com olhos fechados, com a mesma blusa azul e uma calça velha e rasgada, dobrada até os joelhos. Seu rosto permanecia o mesmo. Mas como? Por que não envelhecia? Já fazia mais de 15 anos! Se era tudo uma mentira e tantos detalhes a entregavam, se já não fazia sentido eu mergulhar e me afundar em busca de um amor paterno que não existia senão em lembranças, por que eu insistia em salvá-lo? Eu chorava desesperadamente, confusa, desconsolada. Estava perdendo-o de novo. Até quando aquilo se repetiria? A perda é algo com o qual não se acostuma. Você perde uma pessoa, mas quando perde uma outra, sente a mesma dor. Não existe um aprendizado ou algo que anestesie o sofrimento. Perder o mesmo ente querido várias vezes era o pior castigo que eu poderia receber. Só que havia algo diferente! O mar quente era tocável, não era mais leve como o ar e estava quente, aquela sensação térmica era incrível! Olhei bem para meu pai e decidi ser a última vez que sonharia com ele. Eu jamais quis tirá-lo de minhas lembranças, mas percebi o quanto elas me doíam da forma como eu as memorizava. Olhei fixamente para seu rosto, para lembrá-lo, pela última vez. Foi quando aquele cadáver abriu os olhos para mim e sorriu. Definitivamente não era um sonho como os outros: era o sonho dos meus sonhos. Apenas tentei ficar onde estava, olhando pra ele assustada, chorando, rindo, sentindo saudades. As águas-vivas o empurravam de volta. Não sei dizer se eu afundava ou se ele vinha em minha direção, mas nos aproximávamos cada vez mais. Seu sorriso era o mesmo do dia em que me ensinou a nadar, o mesmo que aparecia em seu rosto quando me comparava com as criaturas marinhas. Era aquele que eu procurei a vida inteira e cuja lembrança me confortou em cada momento difícil pelo qual passei. Quando o homem ficou finalmente à minha frente, me abraçou. Me beijou a testa e pude ler em seus lábios, que não emitiam som algum: “Obrigado. Eu te amo”. E afundou novamente. Não fui atrás, fiquei observando-o. Ele estava feliz e as luzes ao seu redor me cegavam. As águas-vivas estavam eufóricas, como se comemorassem. A luz ficou mais forte e não pude mais vê-lo. Ela se apagou, de repente, e ele já não estava mais lá. Quando nadei de volta para a margem, estava aliviada. A culpa que me perseguiu a vida inteira havia desaparecido. Pela primeira vez havia encontrado a felicidade. Não alegria, que é momentânea. Mas a felicidade plena, a ausência de um desconforto que me matava. Via a minha mãe, meus irmãos pequenos rindo e me chamando. Fui em direção a eles. Poderíamos jantar juntos, sem a dor ao olhar a cadeira vazia onde se sentava meu pai. Acordei, então, com a sensação inédita de que, definitivamente, estava feliz.
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