Oficina Literária

Oficina Literária é uma disciplina do TEL ministrada pela professora Elizabeth Hazin

terça-feira, 31 de março de 2009

Texto do André Luiz (reescrito)

O Destino de um Estradivárius

Sempre cri na possibilidade de se evadir de um destino adverso às nossas vontades, um destino do qual gostaríamos de fugir de qualquer maneira. Sim, para os humanos isto é perfeitamente factível, pois, como disse meu nobre conterrâneo, Maquiavel, somente a virtude mostra-se eficaz contra um possível infortúnio. De fato, invejo os homens, que, ao contrário de mim, tem o mundo à mercê de suas vontades, bastando um espírito sagaz e uma tenacidade exemplar para atingirem seus fins. No meu caso, para valer-me de meus dons naturais, aliás, um dos melhores que há no mundo da música, dependo das mãos de um exímio violinista, assim atingindo meu potencial completo.

Grande luthier que me fez, o senhor Stradivari. Minha singularidade advém não somente da qualidade dos sons que produzo, mas pelo próprio fato de que sou um dos poucos de minha linhagem ainda vivos e apesar de minha idade avançada, ainda não cheguei a cumprir meu papel óbvio e fundamental: o de extasiar platéias e ganhar em troca ovações retumbantes para mim e minha “metade”. Minha vontade se equipara a dos humanos, mas eis que sou refém da sorte, assim é a vida.

O seguinte fato mudou minha percepção de que os humanos estão acima das rodas da fortuna. Na oficina onde fico, chegaram dois músicos, ambos interessados em possuir-me. Meu preço, é claro, era proibitivo, sendo que só um dos músicos gozava de luxo de poder compra-me (tocava numa famosa filarmônica em Turim), mas, em contra partida, carecia da destreza que eu achava digna para mim. O outro padecia do caso oposto: tirava de mim belos acordes, arpegios, improvisos, mas faltava-lhe recursos para a compra. Eu me encontrava no meio do dilema. Meu ego exigia que me fossem pagos não menos que 500 mil euros, mas, ao mesmo tempo, que seria de mim nas mãos de um músico indigno ou até mesmo nas mãos de um colecionador, que me exibiria como um reles troféu? Optei pela segunda hipótese, finalmente. Pena que os fados, contrariaram meu desejo e o do segundo músico, é claro. O som das moedas de ouro (o primeiro músico pagou desta forma, creio que havia tantas quantas para encher um baú) foi mais belo do que o som que o segundo músico havia tirado de mim. O homem esbravejou, na tentativa de demover o vendedor de me entregar a mãos indignas. Dizia que era o único apto a tirar o máximo de minhas qualidades. Tocava para corroborar suas afirmações. Tudo em vão. Saiu desconsolado em contraste com o primeiro músico, que se deliciava com a desgraça do companheiro de profissão.

Desde então, perdi a crença de que a vontade por si só basta para transformar sonhos em algo concreto. Nem mesmo a maior destreza pode se dar ao luxo de vir desacompanhada de um pouco de sorte. Talvez a suposição de que quem é mais abastado desfruta de uma sorte maior não seja no todo incorreta. Os tempos mudaram desde Maquiavel. Há forças muito maiores do que a simples virtude e vontade e disso não podemos correr, nem mesmo os homens, quanto menos eu.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Texto da Juliana

Emile

Já na entrada pode-se sentir o cheiro do cupim por entre madeiras molhadas de um bolor sem cor e contínuo. O numero 53 na porta é de um enferrujado cor de cobre, quase lembra a terra seca da casa de mamãe. A tentativa inoportuna de viver da Samambaia traga o último suspiro de aurora do corredor estreito e denuncia minha suspeita de que Emile já não sai de casa a dias.

Minha entrada é de um silêncio misturado, não enxergo nada além de um capacho torto que marca o sinteco gasto pelos anos. Emile está imóvel frente a um raio fraco de sol que entra pela janela – Traga-me um copo d’água minha irmã. – Consigo ver papai naquele rosto pálido e me pergunto se Sebastian retorce na cova em dias como este. Emile mora com simplicidade e o bege sufoca quando respiro. – Emile, Aurora estaria desesperada em morar aqui. – Emile nem vira o rosto e bebendo o copo d’água levanta as sobrancelhas como num gesto de indiferença. Dali se passavam exatos 7 anos que Aurora falecera e a ausência de sua esposa matava meu irmão lentamente.

Dei-lhe um beijo na testa e o ajudei a levantar-se. Emile já tinha dificuldades em andar e agravava isto a cada dia recusando-se a fazer exercícios recomendados pelo medico, como caminhar na Pampulha ou ir á missa aos Domingos, Emile tornara-se menos religioso e não aceitava a bondade de Deus, era um homem velho que exalava um pretume fétido de um século passado.

Não me orgulho de ser distante, nos meus 68 anos me considero ainda disposta, sobretudo frente a meus filhos e marido que prezo por serem castos frente à essa nostalgia indiscreta de meu irmão sobrevivente. Hoje é 2 de setembro de 1938 e me comprometi em levar Emile para visitar sua filha Mercedes no Rio de Janeiro. Não, não pretendo ir até lá, meus Réis deram apenas para um assento na Panair, Emile precisa sair de casa.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Texto da Laís

Com a mão inclinada em direção ao rosto, eu escuto o sermão de um homem energético. A voz imponente,
o movimento ritmado das mãos que rege a fala furiosa e as feições tão viris estragadas pelo semblante de ódio e o olhar
que rasga todo o resto de dignidade que eu ainda reservava no meu peito me fazem tremer de ansiedade...uma sensação
difícil de desenhar; um sentimento nervoso que surge da segurança que tenho de nunca ter merecido o homem que agora me
corta. Sorte existe e me foi concebida. E esse momento era esperado...não como uma mãe espera a chegada do seu fruto. A minha espera foi devagar, doída, recusada. Mas se existe Sorte também existe destino. E apesar de
limitada, eu posso ser sensata. Posso? Apenas duas certezas passearam pela minha mente durante o desenrolar dos meses que ocorreram desde o meu encontro com a Sorte: aquele, esse Astro é a coisa mais bonita, encantadora, e enigmática que os meus olhos já registraram e eu não o mereço.

A hora chegou.

Texto da Manuela

Nadadora

Comecei a nadar aos seis anos de idade, quando, depois de várias consultas a inúmeros médicos, a natação foi a solução encontrada por meu pai, para as minhas freqüentes crises asmáticas. Nós morávamos em uma pequena cidade praiana do estado do Rio de Janeiro chamada Araruama, localizada a pouca mais de 110 km da capital.

Meu pai era um humilde e simpático pescador, que conquistava qualquer um com quem conversasse. Me lembro que ele chegava sempre após o pôr-do-sol com sua canoa e a rede nas mãos. Eu o via pela janela lá de casa, que ficava em cima de um morro, de onde se tinha uma belíssima vista da praia, dos outros morros detrás do oceano e do céu. Eu sempre o esperava ansiosa. Havia sempre uma surpresa pra mim: podia ser um peixe de cores que eu jamais havia visto, ou algo que ele fingia ter pego no fundo do oceano (embora eu soubesse que havia pego na praia mesmo).

De longe, os presentes que eu mais gostava eram as águas-vivas. Eles as trazia em baldes e as colocava na minha mão, me ensinando como pegá-las sem que me queimasse. E quando me pegava admirando-as, dizia que eu deveria ser como elas, graciosas, encantantes, reservadas. Deveria, principalmente, ter o seu fôlego. Contava que, na verdade, elas eram seres terrestres, mas amantes da água o suficiente para passarem a maior parte do seu tempo dentro da água, indo de vez em quando para a areia respirar um pouco. Eu, pequena, acreditava em tudo o que aquele homem, pra mim tão sábio, dizia.

Naquela época, eu quase não saía de casa devido aos meus problemas de saúde. Meu pai, porém, me trazia o oceano todos os dias depois do pôr-do-sol. Aquilo era suficiente pra me deixar com um desejo imenso de ir, eu mesma, atrás daqueles objetos, daqueles tesouros e animais que eu ganhava. Ficava horas imaginando como seria o mundo debaixo das águas verdes do mar que eu só conhecia pela minha janela.

Um belo dia, meu pai decidiu que eu deveria nadar. Dizia ele, seu coração lhe indicava que aquilo me curaria da asma. Convencemos, com muita insistência, minha mãe de me deixar ir pescar com meu pai. Ele não me permitia mentir para ela, mas essa era uma causa muito nobre e sabia que se disséssemos a verdade, nossos planos iriam por água abaixo. Foi então que, em seus braços, mergulhei meu corpo pela primeira vez no mar. Me lembro claramente de cada emoção sentida, do pulsar rápido do meu coração, da alegria, da empolgação e da falta de ar mais feliz que eu havia tido. Perder o fôlego era apenas mais uma entre as milhões de sensações que eu sentia. Era incrível imaginar que eu pudesse estar junto de todos os maravilhosos seres que meu pai me trazia. Podia tocá-los, queria vê-los, sentir seu cheiro. Nesse momento, eu passava a ser um deles. Finalmente havia me transformada na água-viva.

texto da Débora

O dia estava claro, o sol começava a despontar no horizonte e os primeiros reflexos de luz batiam em meu rosto me lembrando que já era hora de levantar. Seria apenas mais um dia comum cheio de atividades rotineiras, acompanhadas – como sempre – por meu melhor amigo Thomas. Mal sabia eu que, dali algumas horas, veria estampado no rosto de Thomas um desespero mudo – de quem não sabia como reagir.

Sobre mim? Cabem algumas explanações. Nasci e fui criado no seio de uma típica família rica britânica, cercado por todos os mimos concedidos a mim por minha condição social. Apesar de não ser filho único, nunca me foi negado nada; tive acesso ao melhor ensino, a melhor educação, aos melhores bailes, ao melhor da minha sociedade. Atrevo-me a dizer que sempre fui o filho preferido, condição essa estabelecida talvez pelo oportuno fato de ter nascido homem.

Era comum, em dias tão belos, que eu e Thomas saíssemos a cavalo por minha propriedade. Nossas cavalgadas eram envoltas em risos, relatos e agradáveis conversas. Nada nunca nos preocupava. Meu cavalo, Wind, era o mais belo e veloz da região.

Em meio a nossa prepotência, ignoramos o conselho dado por um dos camponeses de não ir para certo canto da propriedade, onde um animal selvagem fora visto na noite anterior.

Apostamos corrida até o local e ganhei – graças as velozes patas de Wind. Ao me virar despretensiosamente e descuidadamente para zombar de Thomas, tudo aconteceu – como num piscar de olhos as cenas se transformaram. Wind se assustou com a súbita aparição do animal, ergueu as patas dianteiras e quando me dei conta já estava caído no chão. A fera fugira com a reação do cavalo.

Thomas, já ao meu lado, indagou preocupado:

- O que você está sentindo?

- Quase nada!

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Os risos cessaram, o silêncio predominava.

O dia? Continuava claro, os reflexos de luz continuavam a bater em nossos rostos. Mas já não conseguia mais me levantar.

Aos 17 anos de idade, tragicamente paralítico.

domingo, 22 de março de 2009

Texto da Luciana

A Louca

    Após trinta anos de magistério, exercidos de maneira dedicada, quase apostolar, eis que eu, agora, encontro-me entre ideias distorcidas, lembranças que vêm e vão; confinada em meu sombrio quarto, completamente só.

    Os filhos se foram, cada qual com sua vida, seus sabores e dissabores; o marido adormeceu palidamente em meus braços.

    E eu? Eu estou aqui, confusa. Em alguns momentos disposta, alegre, brincando com as memórias que os bons tempos deixaram; momentos outros, triste, sem reconhecer objetos, pessoas e nem a mim mesma.

    Sombras, luzes, tudo ao meu redor torna-se monstruoso, ás vezes, ou insignificante, sempre.

    Sonhos, visões, devaneios... Preciso sair, preciso fugir de mim, antes que tudo isso me devore!

Viajar, quem sabe? Ir para um lugar distante, desconhecido, onde talvez eu me encontre uma nova razão de viver.

Texto da Tarci

A Aeromoça

Eu preciso organizar minhas meias em pares, meus livros por ordem alfabética, meus discos por preferência de ritmo e enterrar meu diário morto de ex-amores. Por isso nunca acho nem minhas chaves de casa, quanto mais an excuse para rebater um convite nem tão voluntário assim para substituir Katie. Doente?! Assim eu que vou acabar ficando se continuar nessa loucura. Dias sem parar em casa, nesse vai-e-volta sem fim. Ah, maldita gripe dos infernos! (Ou seria maldita Katie fraca dos infernos?) I am never sick! Paixão é doença? Das desculpas mais velhas ela não podia ter sido menos óbvia? Gripe?? Preciso de açúcar, do meu café.

Hoje I will have to grab qualquer coisa no caminho. Saudades da mãe, da casa que cheirava a café e de menos turbulências. Quando foi que a vida ficou assim cronometrada? Acho que o velho sino viu-se na mesma situação e desistiu. Não badalou irritantemente hoje. Marcando o tempo tão sem atrasos, justo hoje ele resolve calar? Podia pelo menos ter notificado. Simplesmente não bateu longe, religiosamente ao alcance dos meus ouvidos, e quando me dei conta já estava pulando da cama. Acordada pelo automático acertei a taça de vinho mais uma vez. Não da para ficar feliz com mais essa mancha vermelha na cama. É como um rosto olhando para mim através do espelho. Ela me encara feia, abusa da minha boa vontade, espalhada pelo lençol. Ela grita comigo e eu a devolvo apenas meu olhar desprezador. Devia olhar assim alguém que já foi especial. Mães ensinam tanta coisa: “Não pegue a primeira chuva da estação”, “não fale com estranhos”, mas elas falham quando esquecem de ensinar a tirar mancha vermelha do lençol ou how to forget um ex-amor, ou pior, a como conviver com eles still.

Quem nos céus would believe que esse terninho creme combina com essa rosa murcha que uso nos cabelos todos os dias? Cabelos lisos, cara pálida, alma ferida, e consigo meu ar fúnebre sem esforço. Perfeita descrição da minha vidinha recently. Ah, mancha vermelha que não sai! Ah, rosa murcha que não fixa!

sábado, 21 de março de 2009

Texto do Pedro


De certo modo, a vida na torre me proporcionou a maturidade infértil de que padecem os eremitas. Minha paralisia absoluta deu conta de, à semelhança dos tutores das escolas sacerdotais, prover-me da faculdade da abstração. Certamente que, no meu caso, às privações que inevitavelmente sofri (às quais os homens chamam “virtudes”), vinha atrelada a execução plena de minha filosofia. Posso, portanto, dizer que tudo quanto me passou ao conhecimento virou abstração.

Não se enganem, e se pensam que com afetos acolhi tal condição, através do mesmo instrumentário devo oferecer-lhes a oposição: o pensamento é uma doença incurável, ou melhor, uma criança que, dentro do útero, se desenvolve perpetuamente sem a graça ou o alívio do nascimento. Ele nada nos soma, nem de nós se apieda. Drena nosso sangue voluptuoso para suas veias parasitas.

No entanto, não invejo os bêbados que se espalham pelas ruas, nem as prostitutas, este mal que infesta as cidades, mas cujos desígnios divinos lhes são desviados. Não invejo os camponeses de vidas simples nem tampouco os religiosos. Invejo os moribundos e os abortados. E mais ninguém.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Texto do André Luiz

O Destino de um Estradivárius

Sempre cri na possibilidade de se evadir de um destino adverso às nossas vontades, um destino do qual gostaríamos de fugir de qualquer maneira. Sim, para os humanos isto é perfeitamente factível, pois, como disse meu nobre conterrâneo, Maquiavel, somente a virtude mostra-se eficaz contra um possível infortúnio. De fato, invejo os homens, que, ao contrário de mim, tem o mundo sob à mercê de suas vontades, bastando um espírito sagaz e uma tenacidade exemplar para atingirem seus fins. No meu caso, para valer-me de meus dons naturais, aliás, um dos melhores que há no mundo da música, dependo das mãos de um exímio violinista, assim atingindo meu potencial completo.

Grande luthier que me fez, o senhor Stradivari. Minha singularidade advém não somente da qualidade dos sons que produzo, mas pelo próprio fato de que sou um dos poucos de minha linhagem ainda vivos e apesar de minha idade avançada, ainda não cheguei a cumprir meu papel óbvio e fundamental: o de extasiar platéias e ganhar em troca ovações retumbantes para mim e minha “metade”. Minha vontade s equipara a dos humanos, mas eis que sou refém da sorte, assim é a vida.

O seguinte fato mudou minha percepção de que os humanos estão acima das rodas da fortuna. Na loja onde fico, chegaram dois músicos, ambos interessados em possuir-me. Meu preço, é claro, era proibitivo, sendo que só um dos músicos (tocava numa famosa filarmônica em Turim), mas, em contra partida, carecia da destreza que eu achava digna para mim. O outro padecia do caso posto: tirava de mim belos acordos, arpegios, improvisos, mas faltava-lhe recursos para a compra. Eu me encontrava no meio do dilema. Meu ego exigia que me fossem pagos não menos que 500 mil euros, mas, ao mesmo tempo, que seria de mim nas mãos de um músico indigno ou até mesmo nas mãos de um colecionador, que me exibiria como um reles troféu? Optei pela segunda hipótese, finalmente. Pena que os fados, contrariaram meu desejo e o do segundo músico, é claro. O som das moedas de ouro (o primeiro músico pagou desta forma, creio que havia tantas quantas para encher um baú) foi mais belo do que o som que o segundo músico havia tirado de mim. O homem esbravejou, gesticulou, na tentativa de demover o vendedor de me entregar a mãos indignas. Dizia que era o único apto a tirar o máximo de minhas qualidades. Tocava para corroborar suas afirmações, tudo por nada. Saiu desconsolado em contraste com o primeiro músico, que se deliciava com a desgraça do companheiro de profissão.

Desde então, perdi a crença de que a vontade por si só basta para transformar sonhos em algo concreto. Nem mesmo a maior destreza pode se dar ao luxo de vir desacompanhada de um pouco de sorte. Talvez a suposição de que quem é mais abastado goza de uma sorte maior não seja no todo incorreta. Os tempos mudaram desde Maquiavel. Há forças muito maiores do que a simples virtude e vontade e disso não podemos correr, nem mesmo os homens, quanto menos eu.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Texto do Fred

Acordei de um sonho bom, não lembro o que sonhava, só lembro que era bom. Meu sono era pesado, hoje ainda é _ quando eu durmo, o que já não é tão freqüente. Naquele dia, despertei com o fechar da porta da sala, mas o que me tirou da cama foi o soluçar de mamãe. Não, não sabia que algo de errado acontecera. Até hoje não sei. Mamãe havia saído do banho minutos atrás, seus cabelos negros e curtos ainda estavam muito molhados, como os seus olhos quando me viu. Na verdade, presumo que chorava, pois só lembro-me do cheiro do bolo recém preparado na cozinha e do brilho da água nos fios escuros daquela que me sobrava. Meu pai morrera. Eu tinha treze anos e mamãe uns trinta. Casaram-se cedo. Eu nasci pouco depois. Não sei se amavam um ao outro, mas a lembrança do cabelo de mamãe me faz crer que sim. Não tive medo de viver sem meu pai, vivera até ali sem outra presença que não a do dinheiro que ele enviava em envelopes parecidos com o em que mamãe recebera a notícia. O carimbo da companhia de trem era o mesmo para todas as cartas. As cargas eram sempre “tratadas com zelo e respeito”. O medo me encontrou minutos depois, quando mamãe disse que eu era o último que restava para ela. Eu tinha treze anos e uma vida dependendo de mim. Decidi, como muitos já decidiram antes, que não morreria. Nunca mais entrei em um trem, uma ferrovia sempre me lembrava os cabelos molhados de mamãe. Escolhi não ter a certeza da morte grudada em trilhos; escolhi voar.

Meu bem, minha noiva querida, espero que entenda que eu preciso fazer este último vôo antes de aceitar o emprego que seu pai me ofereceu no escritório. Vou, mas voltarei pensando em você, pois escolhi não ser como meu pai. Eternamente seu,

Vicente.